Rui Silva

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Metadata is data about data. They are words, tags, or descriptors associated with units of information (texts, images, videos, etc.) in order to classify them, access them through semantic filters, and relate them to other units. These organizational possibilities turn metadata into something more than a tool for ordering things: they are (at least potentially) a true narrative motor that allows us to browse information sequentially but in multiple ways according to varying criteria.

TISSELLI , Eugenio (2010), «Narrative Motors», in Regards Croises: Perspectives on Digital Literature

A classificação taxonómica é uma obsessão constitutiva de duas das maiores empresas de software, a Google e o Facebook, e impõe-se ao utilizador como barreira de acesso às funcionalidades das suas plataformas. O Facebook desenvolveu um sistema próprio, o open graph protocol, que consiste em inserir meta tags descritivas na cabeça (<head>) da página web, e a Google adoptou um sistema de classificação, o schema.org, que adiciona descritivos de títulos, de datas, etc., às tags de html existentes no corpo (<body>). Estas duas regulamentações protocolares são anunciadas como requisitos que garantem, pela partilha correcta de uma página no Facebook, ou por um lugar altaneiro nos resultados de pesquisa da Google, uma auto-representação correcta na world wide web. Deste modo, seja pela cabeça, seja pelo corpo, a taxonomia é a ferramenta mais relevante para os robots voyeurs da web. Contudo, a classificação taxonómica não se obtém de uma forma imediata, ela está dependente do trabalho concertado, consciente ou não, de milhões de arquivistas digitais que introduzem a informação que irá ser lida pela máquina. Por sua vez, esta informação poderá alimentar resultados de pesquisas efectuadas por outros arquivistas digitais.

O utilizador, que apenas enxerga o que se apresenta no seu ecrã, e a máquina, que tudo vê, são cúmplices implícitos de uma trama que é inexistente por omissão. Nada é declarado nesta relação entre máquina e sujeito, mas, se se aderir a uma acepção de computação que compreenda os efeitos fenomenológicos da primeira e a actividade arquivista do segundo, é possível ultrapassar os entraves de um discurso dicotómico e dividido entre engenho e homem. É neste sentido que foi desenvolvido o projecto Antologia Para Mentes Desertas, que associa, por intermédio de palavras-chave, imagens da biblioteca do congresso americano com textos poéticos seleccionados por 22 «antologiadores». Esta antologia combinatória tira partido dos narrative motors, de Eugenio Tisselli, como prática criativa, mas substitui premissas, trocando a escrita pela edição. Todavia, o âmbito da antologia não se limita ao acesso à base de dados da biblioteca do congresso, ele inclui também as contribuições dos «antologiadores» como base de dados humana, no sentido que Katherine Hayles descreve em My mother was a computer:

[…] in the 1930s and 1940s, people who were employed to do calculations—and it was predominantly women who performed clerical labor— were called “computers”. (Hayles, 2005:1)

I. A RESPIGA IMAGÉTICA

A recolha de imagens no website da biblioteca do congresso americano, https://www.loc.gov/, foi, em maioria, feita a partir de um conjunto de palavras geradas com o auto-complete da barra de pesquisa, uma ferramenta que tenta adivinhar o termo desejado após a inserção de dois caracteres. Permitiu-se um número variável de palavras por cada letra do alfabeto, de acordo com os resultados que foram sendo obtidos na pesquisa. Quase todos os termos em língua inglesa geram resultados, mas apenas aqueles que proporcionaram a escolha de uma imagem foram tidos em conta. O critério para a selecção de imagens foi bastante amplo:

i. Foram valorizados tanto os casos que possuíam uma correspondência entre a imagem e a palavra, os mais «ilustrativos», como os casos em que essa relação era totalmente discrepante. A taxonomia utilizada pela biblioteca do congresso é bastante diversa, ela abrange não só o título, como a geolocalização, a data, as tags, etc., gerando respostas relativamente arbitrárias.

ii. Foram excluídas imagens com baixa resolução por não proporcionarem condições de reprodução satisfatórias nos dois suportes pretendidos: digital e impresso.

iii. Foi dada preferência a imagens fotografadas em grande formato, pela densidade e variedade na escala de cinzas que possuem.

iv. Foram seleccionadas imagens onde se destacavam elementos como a textura, marcas da revelação fotográfica, e a presença de matéria acidental nas reproduções.

Finalizada a recolha obtiveram-se 162 imagens e 50 palavras-chave.

II. A RESPIGA POÉTICA

Para a recolha dos textos poéticos foi enviado um email com um pedido de colaboração a 45 pessoas, tendo sido obtidas 22 respostas. Transcreve-se, de seguida, a redacção desse convite:

Estou a desenvolver uma antologia de poesia e imagens encontradas para um seminário do doutoramento de Materialidades da Literatura e gostava de poder contar com a tua colaboração. O projecto pretende emparelhar imagens da biblioteca do congresso dos EUA (https://www.loc.gov) com poesia escolhida por um grupo de «antologiadores». Foram utilizadas [50] palavras-chave, transcritas em baixo, que correspondem pelo menos a uma imagem, ainda que a relação entre as duas, palavra e imagem, seja apenas fortuita ou casual.  

Nesta segunda fase, pretendo replicar o processo de pesquisa utilizado para a selecção das imagens recorrendo a um grupo de pessoas, como forma de computação humana, e gostava de beneficiar do teu contributo para a escolha de um texto poético publicado que tenha uma relação, ainda que arbitrária, com as mesmas palavras-chave. A escolha da palavra-chave é livre, e a associação com o texto pode ser literal, acidental, ou, caso seja mais conveniente, de ordem patafísica. O texto deverá ser curto, se possível, e fornecido na língua de origem, contudo «apenas» serão contemplados o português, o espanhol, o francês, o italiano e o inglês.

Os resultados serão compilados e editados numa versão digital, num website que permitirá ver as combinações geradas e criar outras permutações, e numa versão impressa, que contará com um pequeno folheto organizado segundo os emparelhamentos e com um baralho de poemas e imagens.

Caso tenhas disponibilidade em participar, agradecia o envio do texto até 16 de Junho.

Palavras-chave:

A Agriculture / Alarm / Antiquity
B [Beach] / Business / Burning
C [Camera] / Canal
D Dancing / Desert / Dress
E Egypt / [Electronics] / Erosion F Foreign
H Hazardous / Highway
G [Glass] / Greece
I Illusion / Invocation
J Journal
K Key
L Lake / [Landscape] / Light / Luxuriant
M Medicine / Modern / Mountain
N National / North
O Organization
P Paper / Performer / Plagues / [Portugal] / Pyramid
Q Question
R Rock
S Sand
T Transport
U Urban / Utility
V Voice
W Winter / Work / Writing
X Xylophone
Y Year
Z Zero / Zoo

Muito obrigado

As respostas foram bastante distintas ou mesmo surpreendentes. Quase todas subverteram o desafio inicial na forma e em quantidade:

i. Surgiram contribuições de mais de 10 textos por alguns «antologiadores».

ii. Houve atribuição de várias palavras-chave a um só texto.

iii. Apareceram textos traduzidos em vez de originais.

iv. Foram enviadas digitalizações de textos.

v. Foi submetido o mesmo texto por duas pessoas para duas palavras-chave distintas.

Todas estas subversões, ou acasos, foram aceites e contribuíram para o melhoramento da estrutura da antologia, ao introduzir mais variáveis e possibilidades de permutação. Até ao dia 30 de Junho foram recebidos e integrados no website 140 textos.

III. AS MENTES DESERTAS DIGITAIS

A existência de websites que reúnem textos poéticos com imagens associadas, organizados segundo uma taxonomia, é significativa . Contudo, a Antologia Para Mentes Desertas não é um repositório de imagens e de textos, mas sim uma ferramenta que combina os resultados de duas pesquisas e os organiza a partir da exploração de diferentes possibilidades de permutação. As possibilidades de permuta, e as condições da sua formação, são preponderantes para o aparecimento do acto criativo no projecto, que surge como evento probabilístico e não como entidade constante. A Antologia funciona por encadeamento e os resultados de cada fase do projecto provocam efeitos sobre as subsequentes – da pesquisa ao website, do website à edição impressa.

O website proporciona cinco páginas, ou momentos, de apresentação e organização da antologia: a página de entrada, o menu de palavras-chave (categorias), o índice de autores e «antologiadores», o índice de imagens e o gerador de índices para edições.

i. A página de entrada é um fantasma, ou melhor, ela apenas gera aleatoriamente um link que corresponde a uma página do website e redirecciona o browser para esse local. A ligação presente no título do website, situada no canto superior esquerdo, replica este mesmo comportamento.

ii. O menu de palavras-chave está ordenado alfabeticamente e cada categoria produz resultados diferentes, dentro dos disponíveis, a cada load do browser. A vermelho, e entre parêntesis, estão o número de textos presentes em cada palavra-chave. Nenhum dos textos tem uma imagem atribuída por defeito, a cada load, é apresentada aleatoriamente uma imagem que pertence à mesma categoria. Existem palavras-chave que apenas têm uma imagem e um texto, portanto apresentam-se sempre do mesmo modo, e existe uma categoria que não possui qualquer texto.

iii. O índice de autores e «antologiadores» produz uma lista de todos os textos organizados por palavra-chave, apresentando o título (com ligação para a página), autor, data (se presente), e o nome de quem contribuiu para esta entrada. Esta página permite ter uma visão de conjunto sobre a extensão dos textos da antologia e o total é apresentado no rodapé. iv. O índice de imagens é uma lista de todas as imagens organizadas por palavra-chave, apresentando o título original (com ligação para a biblioteca do congresso), e a data. Tal como o índice de autores, esta página permite ter uma visão de conjunto sobre a extensão das imagens da antologia, e o total é apresentado no rodapé.

v. O gerador de índices permite simular uma possível edição impressa de 56 páginas, que selecciona aleatoriamente uma das palavras-chave por letra e sorteia um dos textos, e uma das imagens por categoria. Cada reload da página gera um novo índice e a única forma de o guardar é imprimindo, ou gravando para pdf, que pode ser feito a partir da ligação «imprimir». As versões impressas da Antologia serão produzidas a partir dos resultados deste gerador.

vi. As imagens foram reenquadradas para o formato 8:9, metade do formato de ecrã mais comum em portáteis, o 16:9, de modo a permitir que ocupassem metade da área horizontal disponível.

vii. O website funciona em dispositivos móveis, ainda que não seja a forma ideal de visionamento.

O website foi desenvolvido em Jekyll, um flat file cms codificado em Ruby on Rails que não possui uma base de dados, mas utiliza YAML (uma forma de XML) para registar dados sobre cada post (unidade base de conteúdo). O Jekyll integra uma template engine chamada Liquid que permite cruzar os dados de cada post. Todos os resultados aleatórios foram gerados em Javascript, porque o Liquid não permite gerar «non deterministic result[s]».

IV. AS MENTES DESERTAS IMPRESSAS

O website da Antologia permite gerar um conjunto de permutações que estão constritas à expressividade do código das linguagens utilizadas, e ao nível de complexidade da programação desenvolvida. Nas versões impressas pretende-se alargar as hipóteses de emparelhamento, com o baralho de poemas e imagens, e reduzi-las, com a aplicação de duas combinações geradas no website em dois códices. As imagens serão reenquadradas para serem impressas ao corte.

O baralho antológico consiste na reprodução a laser, a preto e branco, de todas as imagens e poemas em formato A3 vertical sobre cartolina Kraft Liner. A categoria será impressa no verso, o que permitirá fazer associações entre imagens e poemas que vão para lá da categorização taxonómica, algo que não é possível de realizar no website.

Os códices antológicos irão reproduzir a combinação resultante de dois loads do gerador de índices para edições. Irão ser impressos a laser, a preto e branco, em formato A4 e terão 56 páginas mais a capa. O papel irá variar de cor, de textura e de gramagem de modo a reforçar a sensação, ainda que errónea, de que são objectos únicos. Cada códice representará um momento da Antologia, uma permutação possível, que, apesar de não ser em si irrepetível, é, no entanto, pouco provável que se repita.

V. CONCLUSÃO

Probabilistic materiality conceives of a text as an event, rather than an entity. The event is the entire system of reader, aesthetic object and interpretation – but in that set of relations, the ‘text’ is constituted anew each time. Like weather produced in a system around a landmass, the shape of the Reading has a codependent relation to the structure from which it arises. Probability is not free play. It is constrained play, with outcomes calculable in accord with the complexity of the system and range of variable factors, and their combinatoric and transformative relations over time. A text is a highly complex system, containing a host of thermal sinks and basics of attraction.

DRUCKER, Johanna (2009), «Entity to Event: From Literal, Mechanistic Materiality to Probabilistic Materiality» in Parallax , 15: 4, 7 — 17

A Antologia Para Mentes Desertas é um projecto em potência que não está circunscrito a nenhum dos objectos realizados, mas sim às permutações que esta pode gerar. Cada objecto é um evento da Antologia e não a Antologia. A Antologia é uma base de dados de imagens e poesia que pode ser organizada e rearranjada de tantas outras formas como as que foram exploradas nestes objectos digitais e impressos. Pensar a edição como evento, como algo mutável e intermédia, pode ser uma forma de tornar mais evidente o fenómeno de reconstituição do texto a cada momento de leitura que Johanna Drucker defende, e é no fundo o propósito desta Antologia Para Mentes Desertas.

VI. BIBLIOGRAFIA
  • DRUCKER, Johanna (2009), «Entity to Event: From Literal, Mechanistic Materiality to Probabilistic Materiality» in Parallax 53.
  • HAYLES, Kathrine (2005) My Mother Was a Computer: Digital Subjects and Literary Texts, Chicago: The University of Chicago Press.
  • TISSELLI , Eugenio (2010), «Narrative Motors», in Regards Croises: Perspectives on Digital Literature, Morgantown: West Virginia University Press.
Projecto desevolvido no âmbito do Seminário de Materialidades da Literatura II — Programa de Doutoramento «Estudos Avançados em Materialidades da Literatura» da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

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