O Deserto

Vendo-se pela primeira vez não se aprende
logo o deserto. Sabemo-lo quando cessa
de ser caudal de areia que se fita
sem se ver e se principia a ver
sem se fitar. Quando cessa de ser
a brancura luminosa de minúsculos cristais
para ser tudo quanto ficou para trás
e é já sombra sendo ainda sol.
O deserto é isso. Não quando o vemos
mas quando o sabemos. Que o deserto é
dentro de nós, como uma imensidão silente,
uma lonjura interminável e anestesiada
de que não nos apercebemos senão
como de um vago espaço neutro,
para descobrirmos aos poucos que o habitam
estranhas figuras que têm gestos graves
e a face na penumbra e que a penumbra
apenas revela da face o espanto
que está sobre as indistintas feições;
que o habitam pequenos corpúsculos ardentes
e que neles há uma transparência de água
e que a água está no fogo
e que água e fogo se possuem e destroem
como o macho e a fêmea. E há
o soluço estrangulado de alguém que morre
inconsolável e há sempre alguém morrendo
algures no deserto. E na norte
e no silêncio e na sombra mais erma,
mais do que prevê o pressentimento,
desborda múltipla a vida e quando
deveras descortinamos o que, iluminando,
o sol esconde, tudo é já um derradeiro olhar.

1969