Tudo o que não é literatura aborrece-me

Tudo o que não é literatura aborrece-me —
queixava-se um checo muito conhecido.
As nossas vidas, aliás, deviam acontecer sempre no futuro,
onde, no fundo, sucedem todos os romances.
O nosso estilo teria a nitidez dos tratados científicos
e a força da descrição de uma batalha —
embora os críticos tentassem
transformar tudo isto num relatório criminal
ou no argumento para um filme de Domingo à tarde.
O Eduardo Prado Coelho era capaz de fazer isso.

Mas é preciso fugir ao máximo dos museus de cera,
perseguir os funcionários públicos do senso comum,
evitar que as mulheres feias tenham filhos.
Aliás, é urgente matar toda a gente que tem fome.
Por isso, não me venhas com xaropes e bancos alimentares.
Não me trates as doenças.
Não levantes a mão.
Vem, vem apenas,
come as you are
— embora seja tarde.

Vem para esta sala de baile com portas cheias de musgo
e cozes molhadas em tabaco. Vem passar uma noite nos seus cantos húmidos
onde coronéis e generais
levantaram as saias à história.

Já tiramos cavalos,
já limpámos trincheiras.

Vem ralar na minha pele arrepiada
acor pálida da lua
como se fosse a casca de um limão.

Vem sem falta —
o palco está vazio,
a sala cheia. Com o passo lento das derrotas, um macaco vestido de Shakespeare
conduzir-te-á até ao último acto.

2018